Exclusividade nossa. Não liberada na Web. Então quem pegar, credite-nos!
Marcelo Tas, a esposa Bel Kowarick e os filhos Miguel e Clarice
"PAI LABORATÓRIO"
"Maria, cadê minha perna?"
Quando criança, eu gostava de histórias assustadoras. Minha preferida era a saga de um homem que tinha a perna arrancada durante o sono. Atordoado, partia em busca de recuperar o naco perdido com uma pergunta: "Maria, cadê minha perna?" O contador da história deveria acrescentar, de improviso, lugares prováveis onde a tal Maria escondeu a perna do infeliz. Para aumentar o mistério, a pergunta erra sussurrada com inflexão crescente. Os possíveis lugares do paradeiro da perna também deveriam ser progressivamente se aproximando do local real onde a história estava sendo contada. Tudo sicronizado para que o suspense chegasse a beira do insuportável.
Então, um grito bem alto - "Maaaaariaaaaa!!!!" - desfazia aquele tsunami de medo fabricado. Era mais ou menos assim:
- Maria, cadê minha perna?
- Tá no meio da floresta.
- Maaaaaria, cadê minha perrrna?
- Tá na porta de casa.
- Maaaaaaaria, cadê minha perrrrrrna?
- Tá subindo as escadas.
- Maaaaaaaaaaaaaria, cadê minha perrrrrrrrrrna?
- Tá aqui dentro do quarto.
- Maaaaaaaariiiiiiiaaaaaaaaaaa!!!!!
Aí, explodíamos em gargalhadas nervosas, de alívio e prazer. A lembrança dessa história, além de aquecer o coração, me ajuda a perceber que o amor por contos assombrosos continua nos meus filhos. Hoje eles têm acesso a histórias em abundância e formatos que não existiam na minha época: CDs, DVDs, videogame, internet e até no telefone! Mesmo com tanta novidade, é bastante animador constatar que o campeão de audiência aqui em casa, principalmente na hora de dormir, continua sendo a história contada ao vivo, em carne e osso. Com alguma frequência, eu e minha mulher, Bel Kowarick, que é atriz de teatro, nos revezamos numa espécie de duelo de contadores de histórias. Bel sempre vence. Inventou uma versão moderna, imbatível, para "Maria, cadê minha perna?"
Não sei contar direiro, mas é mais ou menos assim: Um menino danado foge de casa e sobe numa árvore. Desesperada a mãe vai em busca do fujão. Mas ele é capturado por um pássaro azul-prateado que, com o bico, faz um passeio aéreo sobre a cidade com o danado. No voo panorâmico, o pássaro leva o menino para visitar a escola onde estudou durante o dia, ao campinho de futebol do clube onde passou o fim de tarde...Sobem até uma torre de TV e avistam o shopping onde o garoto foi ao cinema no final de semana....Dependendo do sono das crianças, esses lugares vão se ampliando para fora da cidade, do País e até do planeta.
Depois de atingir as fronteiras mais remotas, o pássaro faz a viagem de volta. Com a ajuda da voz, que vai ficando sonolenta, Bel desacelera a aventura suavemente.
- E aí o pássaro azul voooolta e desssssce no telhado da casa do menino danado....Ajuuuuuuuda ele a tomar um baaaaaaanho....beeemmm quentiiiinho....Nesse ponto, quase sempre, a filharada já capotou. Mas, ás vezes, a viagem foi tão boa e emocionante, que alguém que estava dormindo, abre o olho e dispara:
- Conta de nooovo!!
Contar histórias, prática tão antiga quanto preciosa, é tarefa a se cuidar com carinho, disciplina e dedicação de equilibrista chinês.
Clarice, minha filha menor, explica a razão.
- A história que eu mais gosto é a do pássaro azul-prateado.
- Por quê?
- Porque ela nunca termina.
MARCELO TAS
FONTE - Revista Crescer